Cair
Lucas fica a conhecer Benoît
Lucas passa com a sua mãe as férias de verão na casa do falecido avô, algures numa vila do Sul de França. Aí ouve aos bocadinhos como o avõ durante a Guerra denunciou aos ocupantes alemães um grupo de crianças judias e as freiras que as escondiam. Na sua confusão, Lucas vê-se apanhado no meio de um movimento neonazi. Neste fragmento fica a conhecer o desembaraçado Benoît, um dos líderes desta organização da extrema-direita. Lucas está fascinado pelo seu comportamento.
O logista veio em meu socorro de modo paternal.
- Uma pistola de alarme - disse eu, com voz rouca. Nenhum dos três homens reagiu à palavra. Só quando em jeito de justificação acrescentei "é para a minha mãe", esboçaram de novo um sorriso. O logista fez um gesto com o braço do qual depreendi que tinha de me dirigir para a parede lateral da loja, onde havia uns armários fechados à chave dos quais abriu um. Mostrou-me coisas cuja existência nunca tinha imaginado. Falava em cartuchos detonadores e carregadores automáticos. Enquanto me explicava as diferenças, as vantagens e as qualidades dos cinco ou seis modelos que estavam à venda, eu espreitava os cartões com o preço. Não havia dúvida: cada um era mais caro do que esperava, e esgueire-me do pé do homem, afirmando que iria pensar no assunto. Por eu ter falado, fez-se de novo silêncio no canto onde se encontravam os dois homens. Voltaram a olhar para mim, algo incomodados com a interrupção da conversa, mas também interessados.
- A minha mãe também é assim - disse o maior, que era também claramente o mais velho; estimei-o uns dez anos mais velho do que eu. Porque me tinha dirigido a palavra, não podia deixar de olhar para ele. A loja estava mal iluminada. Só através da porta de vidro entrava alguma luz do dia, mas, porque o espaço era oblongo, precisava de luz artificial no centro e na parte do fundo. Do tecto estavam dependuradas aqui e ali lâmpadas de néon que davam uma luz fraca e trémula. Era difícil distinguir a cara do homem. Vestia um casaco Armani azul-escuro com a lapela virada para cima e por baixo uma camisa bem passada numa cor mais clara. Era louro e tinha feições afáveis.
- Já não se atreve a sair sozinha. Tem sessenta e três anos. Robusta e de boa saúde. Mas o que é que ela há-de fazer rodeada por quatro ou cinco? Uma autêntica matilha de lobos. Toca a entregar a carteira. Não há outras hipóteses.
O lojista e o homem a seu lado diziam que sim com a cabeça, embora fosse óbvio que estava a falar sobretudo para mim.
- Basta viver uma vez uma situação assim. Uma vez e uma pessoa fica aterrorizada para sempre. Não foi o susto pelo que aconteceu - ela quer lá saber de algumas notas -, é o medo pelo que pode vir a acontecer. O pior acontece nos seus sonhos.
- Enquanto falava tinha-se aproximado de mim. Via agora os olhos muito azuis que me fixavam jocosamente. Cheirava a almíscar e a sabonete perfumado. O amigo continuava a dizer que sim com a cabeça de modo que parecia que a cabeça estava solta. Por um momento pensei que seria a minha vez de dizer qualquer coisa, mas o homem continuou: - Nunca mais tem sossego. Só se sentiria segura se tivesse uma arma, uma pequena pistola na mala de mão. Para uma emergência. Não uma pistola a sério, nada disso, é só para pregar um valente susto àqueles homens. Os filhos devem assegurar que as mães têm uma coisa dessas. Gosto de filhos que protegem a mãe.
O logista ouvia o homem com ambas as mãos pousadas de leve no balcão. Por cima da sua cabeça girava lentamente um ventilador, que fazia com que o cabelo ralo na sua cabeça se levantasse de vez em quando.
- Quantos anos tens? - perguntou o homem louro.
- Dezassete - menti.
Ele lançou um olhar rápido ao amigo. A cara deste desanuviou-se. Parecia o mais irrequieto dos dois, era mais baixo, com cabelo mais escuro, e vestia roupas que tinham um aspecto menos novo.
- Estás a ouvir? - perguntou o louro. - Dezassete! Novíssimo, ainda menor, e já com tamanho sentido de responsabilidade.
- Anda, René, não vamos criar problemas, pois não? - perguntou.
O logista apresou-se a desviar o olhar e abanava a cabeça. Alisava o cabelo, mas mal tirava a mão do cabelo rebelde voltava a pôr-se em pé.
- Não posso fazê-lo, Benoît - disse ele. - Se vender a menores, estou frito.
- Mas ouve, René, isto não é nenhuma arma! Isto é material de protecção! E ainda por cima é para a mãe dele.
- Então ela não pode vir buscá-la?
- René, pensava que tinha ficado dito que não íamos criar problemas!
A exclamação ficou a pairar no ar por algum tempo, como se tivesse sido uma pergunta.
- Pois, não - acabou por dizer o logista. - Só espero que não me meta em dificuldades. Ele tem um aspecto muito novo, nem de longe tem dezassete anos.
- O rapaz tem sim aspecto de ter dezassete anos - disse Benoît calmamente. - Parece mais novo por o cabelo ter um corte algo especial. Mas olha bem para ele.
As três cabeças viraram-se na minha direcção.
- Imagina-o com um corte curto de rapazinho. Então, o que vês?
O logista ficou a olhar-me concentradamente.
- Pois, sim - disse Benoît enfaticamente - um rapaz com dezassete anos.
Veio pôr-se a meu lado. Fez um gesto com a cabeça em direcção às pistolas que o logista me tinha mostrado e disse:
Caras, não são?
- Demasiado caras - confessei rapidamente.
- Quanto tens? - perguntou o amigo de cabelo escuro que tinha ficado a ouvir todo o tempo.
- Não chega.
- Não chega, Alex - disse Benoît por cima do ombro.
- Estou a ver - respondeu Alex. Fazia de novo aquele som raspador no nariz. O ventilador por cima do balcão chiava e não ajudava contra o calor que pairava no espaço como um banco de nevoeiro. A alcatifa dava uma sensação pantanosa e o ar cheirava a gordura derretida. Eu só desejava uma coisa e era ver se me pirava dali.
- É horrível - disse Benoît quando eu fazia menção de sair da loja. Detive o passo, por delicadeza, já que se dirigia de novo para mim. - Para a tua mãe, quero dizer. Ameaçaram-na?
- Não - respondi apressadamnete. Pensei na noite anterior e senti o remorso subir dentro de mim como uma bolha.
- Só entram em nossa casa quando não estamos. Também na forja. Levaram a minha serra articulada.
Ele cerrava o punho e os músculos do queixo retesavam-se.
- Uma pessoa era capaz de lhes fazer não sei o quê - disse Alex, solidário.
- E qual vais escolher?
- Primeiro tenho que falar com a mãe - respondi.
- Não devias também dar uma olhadela às outras peças? - perguntou.
- Às verdadeiras?
O logista fez um movimento nervoso.
- É só olhar - disse Benoît enfaticamente em sua direcção.
Abanei a cabeça e repeti que não era preciso. Peguei no quadro, murmurei um adeus e encaminhei-me para a porta.
- Só um momento - disse Benoît - que Alex te abre a porta.
Ao ouvir o seu nome, Alex endireitou as costas. Passou por Benoît que lhe cochichou algumas palavras e seguiu à minha frente para a porta de vidro da loja.
- Isto é um quadro? - perguntou quando eu estava no passeio.
- É - respondi.
- Tu pintas?
Espreitava pelas frestas do papel de embrulho. A porta de vidro fechava-se silenciosamente atrás de nós.
- Eu não. O meu avô pintava.
- Sim? Era conhecido?
- Felix Stockx - disse eu.
Ficou boquiaberto quando proferi o nome.
- Felix. É neto do Felix?
Surpreendia-me a sua reacção. O meu avô pintava cenas da natureza sem grande interesse. E Alex não me parecia o tipo de homem que gasta dinheiro com quadros. Voltou a abrir a porta da loja e gritou para dentro: - É o neto do Felix Stockx!
- Não sabia que ele pintava - disse Benoît pouco depois, após ter vindo para fora e eu ter desembrulhado o quadro para mostrá-lo. Aqui, ao sol, o seu cabelo tinha um brilho ruivo que não notara lá dentro. Estava bastante curto, mas mais comprido do que o de Alex, que era tão curto que se podia ver o couro cabeludo através dele.
- Pelos vistos foi um homem multifacetado - comentou. - O teu avô era um grande homem. Arrastaram-no pela lama, mas para nós continua um exemplo luminoso.
Estavam ambos à minha frente, um pouco inclinados na minha direcção como se estivessem a ponto de me apertar a mão. Devem ter esperado que endireitasse as costas e dissesse algo memorável sobre o meu avô. Mas fiz o contrário. Não sabia do que estavam a falar, fiquei confuso, baixei os olhos e comecei a balbuciar. Devem tê-lo interpretado como vergonha, pois Alex deu-me uma cotovelada e disse: - Homem, mas tu não és assim, pois não? - Fez um gesto que não percebi.
- Como? - perguntei com a voz de um peru.
- Um daqueles que fazem de conta que o passado não existe. Que cobrem tudo com o manto do esquecimento.
Benoît, que era claramente mais delicado e que tinha notado a minha confusão, interveio felizmente e disse: - Nada disso, Alex, o rapaz é apenas cauteloso. Não sabe com quem está a lidar e faz-se desentendido. Não posso censurá-lo. Sabe Deus quantas vezes já levou pancada por dizer quem era.
Eu dizia que sim com a cabeça, sem saber o que estava a confirmar.
- Podes ficar descansado - continuou. - Os nossos ideais são iguais aos do teu avô. Tal como ele agiu no interesse do nosso país, assim queremos nós agir. Com homens como ele aprendemos o que são a obediência e a lealdade. Por isso, lembra-te: se houver problemas, podes sempre vir ter connosco. Farei o que puder para te ajudar.
No decorrer do Verão, voltei a ver Benoît frequentemente. Nunca mais vestiu o casaco Armani azul, provavelmente por até para ele estar calor demais, mas quando penso nele, penso nesse casaco. De alguma maneira condizia com os seus olhos, que tinham uma clareza descomunal e eram azuis como a chama de um bico de gás.
Tradução Arie Pos